Descrição
Hein Leonard Bowles
Edição: 4ª
Páginas: 185
Formato: 15,5 x 21,5
Peso: 310g
Miolo: papel ofsete 90g, costurado
Capa: cartão supremo 250g, com laminação fosca
Primeira edição: 2009
Segunda edição: 2010
Terceira edição revista e ampliada: 2012
Quarta edição, ampliada: 2015
ISBN: 978-85-62450-44-0
Revisão: Dirce Maria Favero Bowles
Capa: Elio Chaves
Projeto gráfico e diagramação: Cláudia Gomes Fonseca Estúdio Texto
Apresentando o Jacu Rabudo, ou uma arqueologia dos falares locais
É interessante observar que a obra mais influente da nossa cultura se inicie com a expressão: “No principio era o verbo”. Os trabalhos contemporâneos de sociologia do conhecimento têm observado que a nossa sociedade se constitui sobre os fenômenos da linguagem e da comunicação. Essa é a ideia central do clássico A Construção Social da Realidade, de Peter Berger e Thomas Luckmann.
Todos os nossos sentidos são socialmente produzidos, assim como a nossa estrutura de sentimentos. O instrumento básico dessa construção é a capacidade humana de se comunicar. Nós não podemos pensar sem a linguagem, e neste caso, não se trata da fala dos filósofos ou cientistas. É no falar cotidiano que se produzem os sentidos que resultam na nossa cultura. Ao menos é isso que demonstram os trabalhos de Russell e de Wittgenstein sobre a “linguagem ordinária”.
De uma certa maneira, como já havia observado Roland Barthes, todos os fenômenos humanos são semióticos. Se por um lado a cultura é produzida através da linguagem, por outro, é a linguagem a expressão mais fiel de nossas formas de vida e da visão que produzimos sobre a sociedade e sobre a natureza. Assim, a linguagem cotidiana revela também a posição particular da qual olhamos o nosso mundo. Em outras palavras, nossos falares revelam nosso lugar social, o “sotaque” que constantemente denuncia de onde viemos.
Por isso, pode-se afirmar que, ao se recolher os falares locais, revela-se também algo da sociedade que produziu esses falares, neste caso a cidade de Ponta Grossa – PR. Uma cidade cujo desenvolvimento está profundamente associado aos caminhos que cruzam e se encontram nesta região.
A antiga estrada do Viamão permitiu a integração dos Campos Gerais às áreas fronteiriças do sul do Brasil e a São Paulo, através da comercialização de gado, especialmente muar. Mas foi no final do século XIX que se encontram em Ponta Grossa as principais vias que ligam a cidade aos núcleos mais modernos do país. A Estrada de Ferro do Paraná, que ligava a cidade ao Porto de Paranaguá, passando por Curitiba, e a Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, que ligava a região ao principal centro dinâmico da economia do país, encontraram-se em Ponta Grossa, criando o principal entroncamento rodo-ferroviário do Sul.
A localização privilegiada no sistema viário possibilitou a formação de um núcleo urbano onde se encontraram pessoas oriundas de diversas tradições culturais. Nas páginas de O Diário dos Campos percebemos, por exemplo, a presença de grupos de oficiais vindos do Rio de Janeiro para servir no regimento local, as ligações familiares e comerciais de setores da sociedade local com a paulista, assim como as várias colônias de imigrantes alemães, italianos, poloneses, árabes e outros que se reúnem em clubes como o Germania-Guaíra, o Dante Alighieri ou o Sírio-Libanês. Percebemos ainda suas presenças nos nomes de empresas comerciais ou industriais que marcam a urbe local, nos anúncios dos jornais ou nas marcas arquitetônicas da cidade.
Para além do núcleo urbano, através de uma rede de estradas em leito natural, Ponta Grossa se liga também ao interior do Paraná e à cultura cabocla, com a forte influência do catolicismo popular que manteve a memória da figura do monge João Maria e os seus dizeres, com as atividades ligadas à agricultura de subsistência e à criação de suínos, periodicamente trazidos à “cidade” e vendidos em uma das fábricas de banha locais.
Esse encontro de caminhos produziu em Ponta Grossa uma multiplicidade de vozes. Algumas delas ficaram registradas nas páginas dos jornais locais ou na literatura ponta-grossense. Outras permanecem nos documentos recuperados pelo trabalho dos historiadores locais. Outras ainda, justamente as que corriam maior risco de desaparecer, são recuperadas nesta obra. O trabalho aqui realizado pelo professor Hein é em tudo semelhante ao trabalho do arqueólogo, mas ao invés da coleta minuciosa de cacos de cerâmica ou artefatos de pedra ou osso, ele recolhe fragmentos de falares. A seguir vai, da mesma maneira que os arqueólogos, cuidadosamente recriando os contextos das falas, que nos permitem entender um pouco mais a complexidade cultural produzida localmente.
Se por um lado a leitura do texto é leve e curiosa, ressaltando o bom humor e a criatividade que se revela nas metáforas e analogias tiradas das atividades cotidianas, por outro, ela nos remete, sem anunciar, à complexa questão de nossa própria formação cultural. O texto do Jacu Rabudo consegue reunir características raras no mundo acadêmico: precisão e rigor no recolhimento das fontes, prazer e bom humor na apresentação dos resultados e uma profunda sensibilidade à semântica da cultura popular local.
Edson Armando Silva
Universidade Estadual de Ponta Grossa
O sotaque de Ponta Grossa
Este livro é, em alguns aspectos, um pouco diferente de seus congêneres que registram falares regionais do Brasil. Sua organização não é alfabética, por verbetes; ela é semântica, grosseiramente falando, já que o texto se divide em tópicos, cada um deles anunciado por meio de uma expressão coloquial que sugere determinado cenário. Essa metodologia, então, lembra vagamente a noção de campos semânticos, porque, pelo sentido, as locuções que compõem cada tópico se vinculam, direta ou indiretamente, com o espaço semântico criado por essas diferentes expressões-título. Nem de longe se trata, todavia, de uma classificação rigorosa e definitiva, se é que uma coisa assim seja possível. Então, as expressões estão agrupadas de uma maneira meio solta, quase irresponsável, ou, como se diz por aqui, mais ou menos “como Deus fez a mandioca”, porque esses tópicos todos, num total de quarenta e seis, poderiam, na verdade, ser em número maior, ou menor, e, além disso, algumas locuções, confesso, facilmente encontrariam abrigo em mais de um local! De todo modo, e ainda que o levantamento do material tenha sido feito por um linguista, seguindo normas e procedimentos da ciência linguística, a classificação final não deixa de ser arbitrária, talvez um pouco tosca.
Por outro lado, para reproduzir, da maneira mais próxima possível das situações reais de fala, a fluidez, a espontaneidade e o ritmo da linguagem coloquial, o livro foi concebido inteiramente à maneira de pessoas falando e dialogando, a sugerir flagrantes do dia-a-dia. Mas existe uma razão muito mais forte para a adoção desse formato, determinada por uma questão de necessidade. Explico. O livro não trata somente de vocábulos que não encontram registro em dicionários ou de variações de vocábulos neles contemplados − que a gramática tradicional insiste em chamar de “corruptelas” −, e de expressões idiomáticas e fórmulas situacionais. Algumas das locuções se fixam unicamente no modo como as palavras se interconectam e se influenciam, a ponto de o contexto fonético determinar-lhes pequenas alterações, como se passa, por exemplo, em “Nóis fiquemo na espera, mas a paca não saiu nem ne um nem ne outro carreiro”. Outras contemplam apenas uma locução adverbial, por exemplo, como em “Sempre às veiz a gente vai pra Imbituva”, ou uma simples preposição, como em “A cadelinha tem muito amor nela”. Outras, ainda, dizem respeito, simplesmente, a combinações convencionais peculiares de palavras, como “especial de bom” e “indecente de feio”. E outras, finalmente, se concentram exclusivamente na flexão de verbos, como em “Daí então vocês verem o que é melhor”, “Vocês não derem tanto doce pras criança” e “Nessa clínica eles nem lerem as receita do médico”, enunciados que, por sinal, revelam uma instigante regularidade e servem como prova de que a linguagem coloquial tem, sim, aspectos sólidos de sistematicidade, enfim, daquilo que se costuma chamar de gramática. Neste particular, e fazendo uma pequena digressão, até formas mais exóticas do ponto de vista da norma culta, como “Comimo que se arregalemo”, não são aleatórias, porque encontram explicações plenas e cabais do ponto de vista da gramática da linguagem coloquial. Mas isso é outra história, porque este trabalho não é acadêmico. Enfim, para concluir o raciocínio que iniciei um pouco mais acima, seria, então, muito difícil reproduzir todas essas peculiaridades e nuanças numa abordagem mais canônica, por verbetes, em ordem alfabética.
Alguns diálogos, é bem verdade, podem ter restado meio caricatos, um pouco forçados talvez, mas esse é um risco que tive de correr. Afinal, é difícil enquadrar todo um corpus dentro desse mesmo modelo, transformando tudo em conversa.
Em seu desenvolvimento, o livro apresenta poucas explicações, mas não acredito que isso o torne menos claro, porque sua configuração permite que o leitor faça as suas próprias inferências e “negocie”, a partir dos contextos que assim foram criados, o significado de vários dos vocábulos e locuções que ele desconhece. Tampouco foram feitas explicações de natureza eminentemente linguística, porque isso foge de seu perfil, o que não impede, contudo, que o trabalho seja uma fonte de pesquisa para profissionais e curiosos que se dedicam à nossa língua.
Cabe ainda mais um esclarecimento, a respeito de um aparente paradoxo, o fato de conviverem no livro formas diferentes de um mesmo vocábulo, como “milho” e “mio”, “velho” e “véio”, “quase” e “quaje”, “resolve” e “resorve”, “dentro” e “drento”, entre tantos outras. A explicação para isso está no fato de que em nenhum momento tive em mente um falante-padrão da linguagem coloquial em Ponta Grossa, aquele que representaria todos, já que isso seria uma abstração injustificável e absurda. Em Ponta Grossa, como em tantas outras cidades do Brasil, convivem diferentes registros, que são níveis sociolinguísticos ou diastráticos de fala. E desse modo, sendo socialmente condicionada a linguagem, diferentes entre si também serão os falantes.
Por falar nisso, todos nós praticamos a linguagem coloquial, e praticamos, em maior ou menor grau, diferenças que ela apresenta em relação à norma culta. Como um dado de curiosidade, tive a oportunidade de conviver com uma pessoa que fazia questão de falar, e efetivamente falava, um português inteiramente pautado na norma culta, com plena correção, articulando todas as sílabas e letras, ou seja, falando “com todos os esses-e-erres”. Sem preconceito lingüístico, para usar a expressão-título de uma das obras de Marcos Bagno, isso fazia a sua fala soar, queira ou não queira, um pouco artificial e afetada. Existe uma expressão para isso no inglês: “to speak like a book”.
Preciso destacar, ainda, que, para caracterizar a linguagem coloquial da maneira mais fiel possível, principalmente em suas dimensões de pronúncia e morfologia, tive que recorrer a alguns artifícios, como acentuar algumas palavras que não admitem acento e fazer adaptações na grafia de outras, numa transcrição fonética rudimentar. Com tudo isso, tive o cuidado de ser econômico nessas intervenções, temendo tornar o livro caricato.
De outra parte, como não fiz nenhum tipo de recorte no material levantado, no tocante a palavras e expressões mais “fortes”, ou “cabeludas”, já que isto simplesmente não cabe, não recomendo a leitura deste livro a pessoas em que o palavrão gera algum desconforto.
Finalmente, não reclamo exclusividade para Ponta Grossa no que respeita à linguagem levantada em meu estudo, o que fica claro, desde já, no subtítulo do livro, onde se lê “a linguagem coloquial em Ponta Grossa”, não, portanto, “de Ponta Grossa”. Com certeza, essa linguagem, ou a maior parte dela, não se limita ao espaço geográfico do município de Ponta Grossa. Ela se espraia para muito além de nossas fronteiras, de modo que a compartilhamos, orgulhosamente, com outras cidades e regiões vizinhas.
Dito isso, não cabem outras concessões, e afirmo que todo esse rico acervo linguístico e cultural constitui, sem dúvida, “o sotaque de Ponta Grossa”.
Nota sobre a 3a. edição
“Esta 3a edição do Jacu rabudo apresenta novas locuções, investigadas ao longo desses três anos que se seguiram à publicação da versãooriginal. Preservei todos os capítulos e a eles incorporei grande parte desse material, por meio do acréscimo de mais algumas falas e diálogos e aampliação de diálogos já existentes.
Também criei um capítulo novo, intitulado ‘Você joga cu de galinha!’, que recupera um curioso acervo de expressões do jogo de bolinhas de gudeusadas antigamente em Ponta Grossa.”
Hein Leonard Bowles,
novembro de 2012
Nota sobre a 4a edição
Às vezes me perguntam se estou preparando um segundo volume do Jacu rabudo. Digo que não, e explico que a linguagem reunidasob este título constitui um campo finito, de modo que não haverá material para mais um volume.
Cabem, sim, acréscimos à versão original, já que continuo pesquisando. Foi assim que tive a oportunidade de ampliar a terceiraedição (dezembro de 2012), e é assim também que agora, por ocasião do lançamento da quarta edição, promovo mais algunsacréscimos. Estes, quase os consigo contar nos dedos, porque não chegam a cinquenta, recolhidos que foram desde 2013.
Depois de alguns anos de exploração intensiva, a matéria-prima de minha investigação aos poucos se esgota, e o que faço hoje maisse assemelha a ficar garimpandinho. Nada de dramático, todavia, porque desse material, agora reunido e preservado, nada se perdeu, e nada foi desperdiçado.
Para lembrar. Toda e qualquer palavra ou expressão candidata a figurar no livro passa por vários filtros antes de ser aceita:dicionários tradicionais, dicionários de falares regionais, pessoas que consulto regularmente e, finalmente, também a internet, ondetudo se vê e tudo se descobre, mas que, como fonte, deve ser explorada com cautela. Esse método é bastante criterioso, mas nãoinfalível. Afinal, como afirma Luís Augusto Fischer em seu Dicionário de Porto-Alegrês (11. ed., 2000): “Palavras, como sabemos, andam por aí, sem pedir muita licença.”.
Gostaria de compartilhar algumas curiosidades. Começo pelo processo de seleção, que sabe às vezes ser frustrante. É que acabo meenvolvendo com essas palavrinhas — mais com umas, e menos com outras, é verdade —, a ponto de torcer para que uma dadalocução que por alguma razão me parece particularmente interessante passe por essa peneira. Como exemplo, lembro-me de minhadecepção quando tive que descartar a expressão idiomática “de lascar o cano” (“Hoje tá um frio de lascá o cano!”). Minha intuiçãome indicava que seria regional, e ela já tinha vencido várias etapas do percurso seletivo, aproximando-se “de tala erguida” da retafinal, quando então a descobri registrada no Dicionário do Nordeste (Fred Navarro, 2004). Ossos do ofício.
Mas não se trata apenas de situar locuções geograficamente — trabalho meio ingrato, já que, por natureza, elas não se deixamconfinar. É necessário também comprovar a sua convencionalidade. Assim, quando se descobre que certa expressão é conhecida e usada por gente de diferentes lugares, em um universo geográfico pesquisado, ela recebe o rótulo de convencional. E essestestemunhos também ajudam a traçar o perfil de uma dada locução, principalmente se ela é de uso corrente ou datada.
Penso que um ponto forte do Jacu rabudo esteja no resgate de locuções que se originaram no meio rural, a partir do contato diretocom a natureza, ou vinculadas com práticas rurais rudimentares que dizem respeito principalmente ao manejo da produçãoagrícola e à lida com animais. À medida que esses antigos meios e métodos caem em desuso — superados por tantos recursos que a modernidade nos trouxe —, e à proporção também que nos distanciamos desse ambiente natural, vamos perdendo contato comessas metáforas que nele se inspiraram.
Eis algumas dessas expressões, acrescentadas à 4a edição, em que se reúnem com tantas outras já registradas: Mandorová da couve(em referência a filhos que vivem à custa dos pais); Vá fuçá banhado! (inspirada no comportamento de porcos que são criados soltos, e dirigida a alguém que está sendo inconveniente); Tava que nem tatu amarrado (observação a respeito de alguém que se mostrainquieto e ansioso); Hoje tá bom pra maiá feijão (dita quando faz muito calor); Pinto não se machuca na pata da choca (comentáriofilosófico sobre a conveniência de punir filhos desobedientes).
Estas, são poucas as pessoas que as usam ainda hoje, mas elas merecem ser recuperadas, porque remontam às nossas origens e falam de nossa cultura.
Hein Leonard Bowles
dezembro de 2015
Sobre o autor
Hein Leonard Bowles é professor titular aposentado da língua Inglesa da Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR), cuja editora chefiou por vários anos. Continua a trabalhar com a revisão de textos e a publicação de livros, agora como editor-chefe da Todapalavra Editora.
Mestre pela UFSC e doutor pela USP, sua área de pesquisa principal é a da linguagem metafórica convencional, tema de seu livro Arqueologia da Raiva e do Entusiasmo (EdUEPG, 2005)
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